lunes, 23 de julio de 2007

Eu sei, mas não devia



(Marina Colasanti)

Eu sei que a gente se acostuma.Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.A gente se acostuma para poupar a vida.Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.




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6 comentarios:

Anónimo dijo...

Interesante, crueza e verdade juntas...

Anónimo dijo...

interesante, crueza e verdade juntas...

Unknown dijo...

ACHO QUE A GENTE NAO SE PERCATA COMO DIARIAMENTE DEJA DE TRABALHAR PRA VIVER E COMENçA A VIVER PRA TRABALHAR... E MUITO TRISTE VER COMO A GENTE VERDADERAMENTE SE ESQUECE DE VIVER Y SÓ PENSA EM FAÇER, EM "O QUE SERVE", EM DAR RESPOSTAS INMEDIATAS A TUDO... DEVIA SER MAIS DEFICIL PERDER O GOSSTO POR AS COISAS SIMPLES.

Claudio dijo...

Muito certo o que o texto diz.
Acho que os tempos modernos fazem que vivamos de um jeito ruim demais.
As pessoas esqueceram de fazer as coisas cotidianas com prazer. Tudo é para ganhar mais dinheiro e cumprir com as responsabilidades que o trabalho precisa.
E ainda algumas vezes percebemos o problema, não passa de ser uma reflexão e seguimos vivendo sem mudar nada.
Sabemos que estamos vivendo para trabalhar mas não paramos.
Sabemos que estamos prejudicando nosso planeta mas seguimos destruindo tudo.
Sempre esperamos que alguém mais o faça, por nos...
Não será o tempo de fazer uma verdadeira mudança em nossa maneira de viver?

Anónimo dijo...

Eu concordei com quase todas as coisas do articulo, eu também acho que a gente está cada vez mais aislada do mundo, com menos tempo para relacionar-se e interessar-se por outras pessoas, as vezes a vida parece uma competência por a melhor sobrevivência e isso nos faze esquecer do a gente a nosso redor. Mas por fim, quando logramos participar em atividades de colaboração e ajuda a outras pessoas descobrimos que há outras formas de lograr uma maior paz em nossas vidas, só por receber no agradecimento das pessoas, o por contribuir a fazer um meio ambiente mais sadio.
Eu também concordo com que a forma das cidades define como a gente se relaciona, é por isso que são muito necessários os espaços abertos, as plazas e todo lugar que permita o contato da gente sobre todo ao ar livre. Os edifícios sim espaços livres para se relacionar, terminam sendo concentrações da gente nas que cada pessoa se preocupa da sua vida portas adentro, embora que todos estem a menos dum metro de distancia. E ainda todos temos istos mesmos discursos, só falta nos preguntar quando por fim as fazeremos realidade.

Abraço

Patricia

Priscilla dijo...

A autora descreve a vida das grandes cidades, onde o sistema forma e organiza o dia das pessoas, onde o sistema diz o que é que eu devo fazer, onde tudo está totalmente estabelecido sem maior questionamento e onde a pessoa humana parece um arquivo programado pela internet. Nos acostumamos a deixar de sentir nosso corpo, nossas emoções, nosso coração, nossa respiração e o verdadeiro sentido da dor. Tudo parece normal, um menino sem casa, uma mulher na rua sem dinheiro, um morto e um ladrão. As selvas de concreto deixam as pessoas sem a capacidade de sentir, ver, descobrir o verdadeiro sentido da vida. A gente se acostuma a não viver mais, por isso só vemos sombras projetadas sobre nossas costas e gostamos delas como se fossem mudar nossas vidas. A mesma coisa acontece com a vida virtual que tem mudado a sensibilidade da gente e deixado as pessoas fechadas nas suas casas só vivendo pela internet.
Esta vida é a vida das grandes cidades do mundo. Se você viajar às províncias ou regiões, poderá ver povos pequenos com outra cultura, mais limpa, natural, viva, com a natureza como protagonista e a sua população brindando para ela os cuidados e honras que ela merece.